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Sob Holofotes Interrompidos: Harildo Déda e os seus 81 anos

POR ISMAEL ENCARNAÇÃO

Foto: Arquivo Pessoal

Em uma noite de sexta, às 19h, em mais um dia sendo vivido dentro do cenário pandêmico, após duas tentativas de ligações falhas, que por algum motivo estavam mudas para ambos, Harildo Déda atende e faz possível ouvir a sua voz, que há pouco fora tão aguardada. Após ser chamado pela primeira vez de “senhor”, devolve com uma resposta que faz ambos rirem, entrevistado e repórter.

Se não pelo ser teatral, fosse pelo humor, nem que fosse uma gota, talvez estivesse no sangue, pelo seu pai, que não contentava-se em contar uma piada sem que a interpretasse. E, pasmem, persuadia e arrancava risadas através das histórias contadas. Do seu interior, quando na presença dele, eram certeiros os risos. Curiosamente, mais à frente, o mesmo homem que encenava histórias com tanto vigor, tentou dissuadir Harildo quando ele decidiu, por fim, ser ator.

Sob as gargalhadas de um bom humor escancarado, Déda nega-se a se definir. Porém, afirma com todas as letras que não é um idoso, mas, sim, um velho. Por meios remotos não é possível ver, todavia, indiscutivelmente, sente-se: é de uma energia tamanha. Em fala, resposta, riso, educação, prosa e, mais uma vez, em riso – pois, nele, o bom humor é sempre presente - percebe-se a positividade de quem viveu e gosta de gozar da sua velhice ativamente.

Nestes últimos tempos, na Escola de Teatro da Ufba, lugar onde ensina e que ocupa o posto de sua segunda casa, a rotina de rir, conversar e “fuxicar” já não tem existido, por efeito do confinamento. O estranhamento, como para todos, também chegou para Déda. Quando vai dar aulas, logo se preocupa com a arrumação da casa. “Será que está tudo direitinho aqui para receber as pessoas?”, pensa. Em seguida, a ficha cai: só verá as caras, literalmente, só verá as caras das pessoas. Nem o corpo, só as caras.

O teatro tem que ter amor e humor, afirma. Assim, mais uma vez consegue e prova que é possível se divertir mesmo com a nova rotina. Há empecilhos? Definitivamente. Mas, a amorosidade e a humoridade podem ser maiores que qualquer um. E, longe deles, não é a perspectiva que seria outra, seria a pessoa, que não seria Harildo Déda.

Sem o teatro, poderia existir, claro. No entanto, diz que encontraria uma forma de existir que de alguma maneira fosse semelhante à de ser teatro. Velho, careca, com o andar meio “nhem, nhem, nhem”, para lá e para cá, como descreve a si mesmo, com seus quase 81 anos, não se cansa de respirar o ar do mundo das interpretações. Dentro ou fora dos palcos, perto ou longe das televisões, dá-se um jeito.

Diz não ter uma missão, pois não acredita em nada disso; porém, para os que creem, a vida insiste em contrariá-lo, ao fazer com que a existência de Harildo acabe se confundindo com a da arte que tem o poder de preencher os seus pulmões, vitalizar o seu corpo e, ao mesmo tempo, saciar a sua fome. O ser Harildo, o ser teatro e o ser interpretação já não se diferenciam mais. Um já não é só um, o outro já não é só outro. Um é o outro e o outro, por conseguinte, é o um.

Foto: Arquivo Pessoal

Sem descendentes biológicos, adota os seus alunos, chama-os de filhos e os transforma em herdeiros, membros de uma família que não se apoia em laço parental. Ser professor para Déda é isso, é o traçado de passar adiante. Passar adiante é ensinar, que é dar para os outros, transferir as suas experiências e se permitir receber novas, afinal, é de fato, uma família.

Marcelo Flores, ex-aluno, que hoje é um renomado ator e, certamente, hora ou outra, já deve ter sido visto por quem vê TV ou cinema, para além dos palcos, tem com Déda uma aproximação ímpar. E, depois de oito meses sem um contato físico próximo, distantes por consequência de uma pandemia, no dia três de novembro, quando Harildo completou os seus 81 anos, viram-se. Foi um momento de tanta emoção, com tantas lágrimas escorrendo sobre as máscaras, sem abraços, mas um encontro aquecido. É um momento, que de acordo com Flores, ficará na memória.

Com certeza é mais do que teatro, é uma relação de amor e afeto. Tanto, que sua filha chama Déda de “vovô”. Como herança, desde a sala de aula, leva a descoberta de um mundo e não menos que isso, Harildo poderia deixar para um herdeiro. Além de ator e diretor, Marcelo confirma a intensa capacidade pedagógica de Déda. No cotidiano, repara que as suas atitudes, quase sempre, parecem de puro significado; se lhe dá um livro, é porque sabe que pode aprender com ele, se lhe recomenda um filme, é porque sabe que há algo em você que pode ser despertado. Isso, com todos a sua volta.

Em lembrança, Harildo fala que é sempre a última obra que marca, que é sempre a última que fica. Isso, porque a cada nova que chega, que faz, aprende algo novo. São os sentimentos, que mesmo com toda experiência, com todo o tempo, todo o espaço quilométrico de palco já percorrido, insistem em fazê-lo lembrar para o que o faz valer.

A Última Gravação de Krapp não foi a última obra. Na verdade, foi a primeira, é peça da sua formação. Mas, ainda assim, ficou e ainda marca. Com idas e vindas, de 1970 até 1978, foram 8 anos de trabalho com ela e nem no tempo atual Harildo se exaure. Há 40 anos fez o seu mestrado, a fim de conhecer mais e ensinar, mas, mesmo hoje, ainda é sedento por aprender e transmitir. Perceba como Harildo não se exaure.

Outra obra que o marca muito, capaz de fazer com que busque mais ar, para que possa enfim falar o nome, é a peça “Gracias A La Vida”, de Isaac Chocrón. Harildo a trouxe para o Brasil, junto com Bemvindo Siqueira e João Augusto - outras grandes figuras- , quando foi com o Teatro Livre da Bahia participar do Festival de Caracas, do Festival de Bogotá e do Festival da cidade do Panamá. Episódio de grande aprendizado por entre alguns países da América Latina.

E de um emaranhado de coisas, muito foi vivenciado, muitas coisas foram aprendidas até chegar aonde chegou. Muito chão, muita terra, muitos figurinos e muitas pessoas já vividas por um homem só. São acontecimentos extremamente importantes, é possível sentir a emoção nas pausas ao falar.

Quando perguntado, entre ator, diretor e professor, mais uma vez confunde-se: “sempre que estou dirigindo uma peça, me pergunto por que porra não estou lá atuando. Quando estou atuando, me pergunto por que não estou dirigindo a porra da peça. Como professor, é um grande desejo de passar adiante. São 56 anos.”, diz. De fato, Harildo Déda pode ser os três e até mais, como já foi, se um dia quiser. Mas, inegavelmente, é uma figura, um ser presente, que veio e deixa o seu legado. Um mestre.